Entrevista com David Lynch

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entrevista de um dos mestres do cinema moderno, com sua lógica do absurdo e abstratas dimensões oniricas torna o encontro com a arte filmada de David Lynch, obrigatória.



Muitas pessoas acreditam que seus filmes seguem a lógica dos sonhos. Mas você escreve no livro que é muito raro tirar idéias de algum sonho para um filme.


Lynch: É verdade, eu quase nunca tiro idéias dos sonhos que tenho dormindo. Mas sonhar acordado é uma outra coisa. É uma forma ótima de ter idéias. O desejo é a isca. Se você deseja enquanto está sonhando acordado, as idéias vêm à sua mente. Você pode não gostar delas, mas outras virão. Você pode estar sentado em uma cadeira, pode estar andando ou almoçando num restaurante. Uma pequena coisa pode engatilhá-la. Daí você precisa botar no papel. Diga a todos: sempre escreva as idéias pelas quais você se apaixona, porque você não pode esquecê-las.


Como foi a experiência de trabalhar na TV com Twin Peaks? O tempo mais longo da série em relação a um filme permite um fluxo melhor das idéias?


Lynch: Sim, contar uma história numa série é emocionante, porque as idéias não precisam ser concluídas de forma tão rápida como em um longa-metragem. O problema é que a TV consome demais o seu tempo. Em um ponto de Twin Peaks, eu parei de escrever e de me envolver com a série. E daí deixou de ser divertido. Eu filmei o longa Coração selvagem [1990] em meio à série. Não é a forma certa de fazer as coisas. Você tem que estar envolvido o tempo todo, estar dentro do processo, sentir o trabalho.


No livro, você conta que estava obcecado com o julgamento de O.J. Simpson durante a filmagem de A estrada perdida, e que isso se refletiu no filme (como Simpson, o protagonista teria sofrido uma “fuga psicogênica”, em que sua mente se ilude para não pensar no horror cometido). Você parece um artista mais voltado para seu interior do que para o mundo externo. Foi uma surpresa saber que você acompanhava um fato tão mundano como o julgamento de Simpson. De que forma você acompanha questões urgentes do dia-a-dia, como as eleições americanas, por exemplo?


Lynch: Antes de responder, tenho que dizer que vou votar em Barack Obama... Bom, eu sempre fico obcecado por certas coisas, e o julgamento de O.J. Simpson foi uma delas. Eu costumo dizer que seres humanos são como detetives, nós pensamos no mundo como eles. Pistas dispersas vêm de todos os lugares, TV, rádio, revistas, e nós tentamos usá-las para desvendar o grande quadro.



História real (1999) é um trabalho de encomenda, com uma narrativa muito mais linear que a maioria de seus filmes, embora ainda tenha várias marcas de sua obra. Foi mais difícil trabalhar dessa forma, já que essa não é a maneira como sua cabeça geralmente funciona? Você acha que Hollywood tornou-se linear e óbvia em excesso?


Lynch: Com certeza. Mas talvez tenha sido sempre assim. Eu costumo dizer que História real é meu filme mais experimental, porque há uma emoção que eu tentei tirar da narrativa, mas poucos elementos se movimentando para isso. Essa história de uma pessoa na tela chorar, mas o sentimento não se traduzir para o espectador... É delicado, arriscado. Mas às vezes uma pessoa ri na tela e todos vão junto. É uma mágica. Como acontece? Não sei. Por isso digo que esse é um filme experimental.


Cidade dos sonhos tem uma visão dura de Hollywood. De certa forma, o filme compara os produtores com mafiosos. Isso reflete sua opinião sobre Hollywood?


Lynch: Essa é sua visão do filme. Não há uma maneira de um único filme representar toda a Hollywood. É sempre uma pequena fatia de algo. Como acontece com meu filme preferido, Crepúsculo dos deuses [1950], de Billy Wilder, que captura o sentimento de Hollywood em uma época específica.


Você diz que não há só uma Hollywood. E, observando a vista do seu estúdio, dá para entender por que você gosta daqui como um espaço geográfico. Mas como é sua relação com os estúdios?


Lynch: Eu nunca trabalharia em um estúdio. Apesar de sabermos que essa é uma cidadecheia de absurdos, certas coisas podem ser muito dolorosas. Mas há algo de mágico em Hollywood também: ela é sempre a mesma, mas está sempre mudando.Se você quer sobreviver, é melhor encontrar o balanço no sucesso e no fracasso. Aí você estará OK.


Muitos espectadores tentaram decifrar quais partes de Cidade dos sonhos eram pesadelo, imaginação ou realidade. Você considera esse tipo de interpretação válida ou preferia que as pessoas simplesmente aceitassem o mistério do filme? Por que você sempre se recusa a explicar seu trabalho ou a gravar faixas de comentários para seus DVDs?


Lynch: É perfeitamente normal tentar fazer qualquer interpretação do filme. A razão pela qual eu não falo sobre meus filmes é que o que eu tenho a dizer realmente não importa. Sou apenas mais uma pessoa. Se disser algo, é o que representa para mim. Eu não quero estragar as interpretações de ninguém. É importante tentar manter o filme o mais puro possível.Ele leva muito tempo para ser feito. Depois que está concluído, nada deve ser adicionado, nada deve ser tirado.


No livro, você diz que não faz idéia do que a caixa e a chave representam em Cidade dos sonhos. É verdade?


Eu sei o que é para mim. Mas não quero arruinar a visão das outras pessoas sobre o assunto.


Depois das experiências com vídeo digital em Império dos sonhos, para onde vai sua carreira no cinema?


Lynch: Não sei. Estou fazendo um documentário sobre a turnê que fiz por 50 países falando de meditação e paz. Quando terminar, verei o que acontece. Quero saber aonde as coisas estão indo, porque o cinema não é mais o mesmo. Onde um filme será exibido? Que mundo será esse? Eu estou em uma fase de contemplação.


Vou mencionar dois fatos que podem ter te deixado com raiva de Hollywood em diferentes épocas e você me diz se a meditação ajudou a superá-los: o primeiro foi não ter o corte final de Duna (1984) e o outro foi não ter encontrado distribuidor americano para Império dos sonhos (2006).


Lynch: Foi uma tristeza e um pesadelo não ter o corte final de Duna. Eu sabia, intelectualmente, que não deveria aceitar isso. E, assim que topei, percebi que estava me vendendo. Mas não haveria um corte do qual eu me orgulharia, porque comecei a me vender já na fase do roteiro. Sabendo que [o produtor] Dino [De Laurentiis] pensava de um jeito, eu tentei conseguir tudo que queria dele, mas certas coisas eu sabia que não ia conseguir, elas saíram do caminho. No fim do processo, eu estava destruído internamente. Porque o filme sempre sou eu. Eu me identifico tanto com meu trabalho que, se ele é ferido, eu também saio machucado. Eu juro: se eu não estivesse meditando, algo muito ruim teria acontecido comigo.


Como tentar se matar?


Lynch: Ou isso ou ter ficado muito, muito doente. Eu não podia suportar. Mas, de alguma forma, vi que ia passar. Não foi divertido, mas eu aprendi uma lição e superei. Com Império dos sonhos, foi bem diferente. Se você faz um filme no qual realmente acredita e ele não vai bem no mercado, você pode viver com isso facilmente. Se você faz um filme como Duna, no qual não acredita, e ele ainda fracassa, você morre duas vezes. Império dos sonhos é um filme que me levou a lugares lindos, a uma promessa de futuro. Eu amo o filme, então não me importa se ele foi bem ou não no mercado. Além disso, ele foi lançado em uma época que o cinema está mudando radicalmente, como a música. Os lançamentos em salas de cinema raramente se pagam, o DVD também está em crise, tudo acaba desaguando na internet. Império dos sonhos foi pego no meio dessa transição. Além disso, claro, é um filme com três horas de duração que quase ninguém entende. Mas há pessoas que amam o filme. E eu sou uma delas.



Você sempre foi um defensor dos experimentos visuais na internet. E, depois da experiência com o vídeo digital em Império dos sonhos, declarou que a película está morta. A sala de cinema também está em vias de extinção?


Lynch: Está e não está. Há algo sobre uma sala de cinema e uma experiência compartilhada que eu não vejo muito como pode morrer. Mas acho que o cinema vai se tornar cada vez mais uma arena de eventos. Vai ser difícil para as pequenas salas sobreviver. Também acho que os centros de entretenimento caseiros vão se tornar cada vez melhores. Eu acredito que ver um filme é um evento sagrado. Não posso dizer às pessoas o que fazer, mas acho que a luz deve estar baixa, não deve haver interrupções, o som deve ser incrível e a tela a maior possível, para que você tenha a chance de ir para outro mundo. Eu tenho um home theater, e os DVDs ficam lindos nele. Se a imagem está definida demais, você pode tirar um pouco do foco e ter uma grande experiência.


Você continua freqüentando o cinema? Que filmes recentes lhe agradaram?


Eu gostei de Onde os fracos não têm vez, dos irmãos Coen, com exceção do fim. Assim que o herói foi morto, o que nós nem vimos acontecer, eu saí completamente do filme, não me importei com nada do que veio depois.


Como foi sua infância? Você identifica algo naquele período de sua vida que ajuda a explicar o cineasta que você se tornou?


Lynch: Tudo que você assimila quando criança é importante. Meu pai era um pesquisador do Departamento de Agricultura. Ele cresceu em Montana e amava árvores de uma maneira que você não pode imaginar. Ele me levava de tempos em tempos à floresta. E eu continuo indo hoje. Amo as árvores do Noroeste americano, principalmente o pinho. Já a minha mãe cresceu no Brooklyn. Quando eu era pequeno, era comum sair desse clima de floresta do Noroeste para Nova York. E esse contraste violento impressiona uma criança. No Brooklyn, eu sentia uma incrível tensão no ar, violência, medo. Já a floresta eu achava amigavelmente misteriosa. Você podia sentar, ouvir e olhar por horas. Parecia que não acontecia muita coisa, mas era mágico. Não há nada como a natureza.


Você era considerado uma criança excêntrica?


Não. Na verdade, eu nunca tive uma idéia original até eu chegar a 19, 20 anos.E qual foi essa idéia?Não me lembro. Mas me recordo de pensar algo que era mais meu do que de qualquer outra pessoa. Era algo relacionado ao meu trabalho como pintor.


Quando você descobriu que a pintura não seria suficiente para você?


Lynch: Não é que não era suficiente. Eu amava e ainda amo a pintura. O que aconteceu foi o seguinte: eu acabei indo estudar na Pennsylvania Academy of Fine Arts, na Filadélfia. Eu nunca quis pisar na Filadélfia. Mas eu estava lá. E foi um grande lugar para mim, porque os alunos eram pintores sérios, e nós inspiramos uns aos outros. Eu tinha um cubículo em um grande estúdio na escola. E estava lá fazendo uma pintura de um jardim à noite. Eu estava olhando para a pintura e de dentro dela veio um vento que moveu as plantas. Eu pensei: uma pintura em movimento! Havia um concurso de pintura experimental no fim de cada ano. E decidi fazer justamente uma pintura em movimento, um filme com um loop de 1 min sobre uma tela esculpida, com um barulho de sirene ao fundo. Chamava-se Seis homens ficando doentes. Ganhei o primeiro prêmio. E esse foi meu começo no cinema.


Logo depois da escola de arte, você começou a filmar Eraserhead e a praticar meditação transcendental. No livro, você conta que foi uma época turbulenta em sua vida pessoal, e o filme reflete o conflito do protagonista com a idéia de casamento e da paternidade. A meditação também ajudou nessas questões íntimas?

Lynch: Eu me casei e me separei três vezes. Então você pode dizer que tenho problemas no departamento matrimonial. Mas, na minha cabeça, as coisas mudaram. Os eventos na sua vida podem permanecer basicamente os mesmos quando você começa a meditar, mas a maneira como você os enfrenta certamente melhora com o tempo. As relações melhoram. Mesmo as relações estremecidas. Os problemas continuam lá, mas há uma gentileza e uma compreensão maiores pela outra pessoa. Tudo pode estar desmoronando, mas isso não vai mais matar as duas pessoas.


É verdade a história de que, ao ser apresentado à atriz Isabella Rossellini (que depois se tornaria sua namorada por quatro anos), você teria comentado: “Você poderia ser a filha de Ingrid Bergman!” (sem saber que, na verdade, Isabella é realmente filha de Ingrid com o cineasta Roberto Rossellini)?



Lynch: História verdadeira. Eu estava com outras três pessoas. A gente foi apresentado em um restaurante de Nova York. Eu estou lá sentado e olhando para Isabella. Daí fiz aquele comentário. A outra garota na mesa me olhou como se eu fosse um idiota. Mas a Isabella levou na boa.


E quanto à história de que você teria sido convidado por George Lucas para dirigir O retorno do Jedi (1983), depois que ele viu seu trabalho em O homem elefante?


Lynch: Sim, é verdade. Mas era uma história do George. Eu apenas respondi que ele mesmo deveria dirigir.


Depois do fracasso de Duna, você se consagrou com Veludo azul, que tem muito das marcas do seu cinema posterior. Eu gostaria de saber como nasce a idéia de um filme tão peculiar como esse,de entender um pouco seu processo de criação.


Lynch: Quando Bobby Vinton gravou a música “Blue Velvet”, eu não gostei muito. Não era rock’n’roll. Mas, quando a ouvi de novo anos depois, ela despertou algo em mim. Ela tinha o clima do que o filme se tornaria. Eu escutei a música e pensei em gramados verdes de noite, lábios vermelhos e um carro. Isso foi o começo. O filme nunca aparece para mim de uma só vez, ele vem em fragmentos. Esses foram os primeiros.



Entrevista cedida a resvista Trip, em seu estúdio em Los Angeles, em 18 de julho, 2008

Entulho Cósmico

Toda a palavra é um verso e todo o verso é um infinito

Um comentário:

  1. Muito legal a entrevista!
    Interessante a preocupação dele em dar espaço as várias interpretações da obra dele, mais um razão pra achá-lo um gênio!

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